Primeira reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a médica Denise Pires de Carvalho afirma que o maior desafio à frente do cargo é administrativo. Num cenário de contingenciamento orçamentário, diz a professora, será difícil manter serviços básicos para o funcionamento da instituição, a maior do País. Segundo Denise, os cortes feitos pelo Ministério da Educação (MEC) bloquearam “R$ 114 milhões de um orçamento global R$ 360 milhões”.
Em conversa com O POVO, a reitora, nomeada por Jair Bolsonaro em junho passado depois de encabeçar a lista tríplice, defende que “a autonomia financeira é fundamental para as instituições federais, mas ela não pode ser feita às custas da autonomia universitária”. E acrescenta: “Me preocupa a postura do ministro da Educação, que é um pouco de ataque às instituições que ele devia proteger e tentar fortalecer”.
O POVO – A senhora é a primeira mulher a dirigir a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em quase um século de instituição. Como se sente em relação a isso?
Denise Pires de Carvalho – É uma honra ser a primeira mulher a dirigir a UFRJ, que é a primeira universidade federal do Brasil. Mais que isso, é a maior universidade federal do País. Nós oferecemos hoje 176 cursos de graduação, 130 mestrados, entre acadêmicos e profissionais, e 94 cursos de doutorado. São quase 100 programas de pós-graduação, vários de excelência. São mais de 1,2 mil laboratórios, 45 bibliotecas e 14 prédios tombados. É uma instituição pujante, muito grande, e que forma mais de mil alunos por ano. Então, para mim, é uma grande honra estar à frente dessa instituição.
OP – Em algum momento imaginou que, por ser mulher, o presidente Jair Bolsonaro talvez a preterisse para o cargo?
Denise – Nós ganhamos no primeiro turno, na consulta prévia (aos estudantes, professores e servidores), e depois ganhamos a eleição no colégio eleitoral com ampla maioria, mas é uma prerrogativa do presidente escolher entre os três primeiros dessa lista. E o presidente já havia não escolhido os primeiros colocados. Então esse receio existia. No entanto, ele já tinha nomeado primeiros colocados. Havia receio, que é natural, mas também estávamos confiantes porque ele já tinha aceitado a escolha da comunidade.
OP – Havia precedentes tanto de primeiros quanto de outros nomeados pelo presidente.
Denise – Sim, inclusive havia a nomeação de reitores “pro tempores” (temporários). O que mais nos preocupava era a possibilidade de um “pro tempore” assumir e ele não aceitasse nenhum dos três da lista. Seria o pior. Tudo poderia acontecer, mas ficamos bem satisfeitos com a escolha da primeira colocada.
OP – Como gestora, a senhora tem uma série de desafios pela frente. É uma universidade imensa, com dificuldades, como qualquer federal do País. Como projeta esses anos de mandato?
Denise – O maior desafio é, sem dúvida nenhuma, administrativo, por conta dos cortes orçamentários, o contingenciamento, a questão do teto de gastos e a pouca autonomia que as universidades têm para gerir os seus recursos. Por exemplo, a UFRJ tem parque tecnológico, faz interação com empresas historicamente. Essa verba, que a gente chama muitas vezes, dependendo da fonte, de recurso próprio, vem sendo abatida do orçamento do MEC (Ministério da Educação). Isso não estimula as instituições a produzirem e a empreenderem, porque no fundo a gente acaba tendo nosso orçamento descontado desses novos recursos. O nosso grande desafio é lutar junto ao MEC para que os recursos próprios se somem ao nosso orçamento da planilha e não sejam debitados.
OP – A universidade tem alguma receita produzida autonomamente, mas isso acaba sendo descontado do que ela receberia. É isso?
Denise – Exatamente. A UFRJ tem terrenos aqui na cidade universitária, por exemplo, onde estão instalados um Centro de Pesquisa da Petrobras e outro da Eletrobras. Há vários terrenos nossos que são alugados para essas instituições, e isso é uma fonte de receita. Essa receita, que é chamada de receita própria, quando entra na conta única, o MEC acaba abatendo da nossa verba de orçamento. Isso é muito ruim, os recursos próprios deveriam se somar ao orçamento na planilha.
OP – Aproveito que falou sobre autonomia financeira, um dos pontos do “Future-se”, programa do MEC que foi apresentado recentemente. Como avalia esse projeto?
Denise – A autonomia financeira é fundamental para as instituições federais, mas ela não pode ser feita às custas da autonomia universitária. A autonomia da gestão financeira, nós queremos. Está no artigo 207 da nossa Constituição. O MEC concede, às autarquias federais e às universidades, autonomia. Para ter a autonomia financeira que eles propõem no “Future-se”, nós teremos que contratar uma organização social que vai gerir, pelo que está no programa, as atividades-fim da universidade, como ensino, pesquisa e extensão. Essas atividades não podem ser geridas por uma entidade privada, como uma organização social. Isso é um erro do programa, sob meu ponto de vista, porque dá possibilidade de autonomia financeira retirando o que nos é mais caro, que é a nossa autonomia na atividade-fim no ensino, pesquisa e extensão. E isso não dá para as universidades aceitarem.
OP – Isso poderia afetar a liberdade de produção acadêmica?
Denise – As organizações sociais devem ser avaliadas por metas. Quem vai cumprir as metas, as organizações sociais ou a universidade? Isso é uma primeira questão. Como a organização social vai fazer para atingir essas metas? Através de um contrato, sem concurso, de funcionários e professores? O contrato de pessoas sem concurso para atuar no ensino/pesquisa/extensão me parece um retrocesso no País.
OP – O ministro da Educação disse que a adesão ao programa dependeria da instituição. A UFRJ não deve aderir?
Denise – Para que a UFRJ adira, vai depender de como virá o programa. Como ele está escrito no momento, não há intenção de a universidade em aderir. Ele está em consulta pública, e nós acreditamos que haverá mudanças ainda no programa apresentado. Estamos analisando seriamente nos colegiados superiores da universidade e a universidade está participando individualmente da consulta pública. A nossa análise preliminar é de que, como está posto, não é do nosso interesse contratar organização social para atividade-fim da universidade. Caso isso mude no programa, pode ser que a gente venha a aderir. Mas é uma condição para a UFRJ que a autonomia universitária seja preservada, e o programa, como está, não me parece preservar a autonomia da universidade.
OP – O meio acadêmico vive um momento de tensões, não somente por causa de declarações recentes do atual do ministro da Educação. Parece que há uma certa hostilidade às universidades. Como a senhora avalia esse cenário?
Denise – É muito importante que a sociedade entenda qual é a importância da academia, a importância da produção intelectual, a importância da produção de conhecimento. Nós temos novos medicamentos, e isso se deve à atuação de ciência e tecnologia no âmbito das universidades. Mais de 95% de nossa produção intelectual é feita nas universidades públicas. Então a sociedade precisa entender, e acho que entende, porque vimos nos movimentos de estudantes e pais, o papel importante que a academia tem no desenvolvimento do País. Eu acho que o governo precisa entender que nós somos parceiros no avanço do País, não deve haver hostilidade. Me assusta um pouco que o ministro confunda um professor com dedicação exclusiva, que é um pesquisador que gera conhecimento, com um professor “horista”, que dá oito horas de aula e vai embora pra casa. Nenhum de nós, que está trabalhando com dedicação exclusiva e ministra pelo menos oito horas de atividade didática, vai pra casa depois disso. Nós estamos num ambiente produtivo, a gente tem laboratórios de pesquisa, temos teses, orientações acadêmicas, congressos. São várias atividades que ultrapassam em muito as 12 horas diárias de trabalho. Um cientista não para de pensar. Eu diria que a gente está 24 horas ligada à atividade acadêmica. Trabalho braçal, no computador, lendo tese, preparando aulas e escrevendo artigos científicos, patentes, tudo que faz um professor com dedicação exclusiva, não leva menos de 12 horas por dia. O ministro precisa entender com quem ele está falando. Acho que ele confunde o professor com dedicação exclusiva, que é a base da pós-graduação e da pesquisa no Brasil, com o professor “horista”, aquele que vai lá, dá aula com material muitas vezes amarelado pelo tempo e não se atualiza e é pago simplesmente para dar essa aula e ir para casa. São profissionais completamente diferentes.
” É muito importante que a sociedade entenda qual é a importância da academia, a importância da produção intelectual, a importância da produção de conhecimento. Nós temos novos medicamentos, e isso se deve à atuação de ciência e tecnologia no âmbito das universidades.”Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ
OP – Acredita que haja um processo de asfixia do ambiente acadêmico no Brasil hoje?
Denise – Um ministro de Estado, seja de que área for, deve defender a sua pasta. Me preocupa a postura do ministro da Educação, que é um pouco de ataque às instituições que ele devia proteger e tentar fortalecer. É preocupante que o ministro atue dessa maneira. Qual o intuito? Porque ele é um professor universitário. O ministro fala dos professores como se todos fossem “horistas”, o que é a minoria no sistema federal de ensino superior. Na UFRJ são 80% dos professores com dedicação exclusiva. A Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) tem mais de 90% dos professores desse tipo. Ele erra no salário e depois ele erra na carga horária. O ministro erra muitas vezes. É por desconhecimento ou porque é intuito dele jogar a sociedade contra nós? Eu espero que seja por desconhecimento.
OP – Avalia que a sociedade ainda desconhece o que é a universidade pública?
Denise – Eu acho que a sociedade entende bastante. As atividades de divulgação científica avançaram muito no País nos últimos anos. As redes sociais também ajudam muito, assim como a mídia. A sociedade sabe que o teste pra zika, pra chikungunya, essas doenças que têm acontecido nos últimos anos, tudo isso se desenvolveu no âmbito da universidade. Do desenvolvimento de uma aspirina até um novo tratamento do câncer, tudo nasce na universidade. O Brasil detém a ferramenta de extração de petróleo em águas profundas graças a uma tecnologia desenvolvida na UFRJ que agora o mundo todo utiliza. A pesquisa brasileira é internacional há muito tempo. A sociedade conhece. Eu acho que uma parte da sociedade talvez tenha interesse que isso não seja visto. Até falei no meu discurso de posse. A academia não vai se encastelar mais, muito pelo contrário, a gente está de portas abertas para a sociedade brasileira, de mãos dadas, para que a gente continue atuando no desenvolvimento do País.
“Um ministro de Estado, seja de que área for, deve defender a sua pasta. Me preocupa a postura do ministro da Educação, que é um pouco de ataque às instituições que ele devia proteger e tentar fortalecer.”Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ”
OP – Qual foi o impacto do contingenciamento de verbas na UFRJ?
Denise – O contingenciamento foi de 30% — de 3% se é levado em conta o salário das pessoas, mas, como eu disse antes, não temos autonomia financeira para tocar no salário das federais. Então temos que tirar os salários dessa conta. Tirando o salário da conta, usando só as verbas discricionárias, que é a verba para pagar água, luz, bolsa estudantil, alimentação dos estudantes, segurança dos campi — dessa verba eles tiraram 30%. Só que, na UFRJ, ela corresponde a 42%, porque nós temos uma verba de assistência estudantil bastante importante que não será tocada. Sem diminuição da verba de assistência estudantil, que é um interesse nosso, a diminuição de orçamento para pagamento de luz, água e segurança é da ordem de R$ 114 milhões para um orçamento global R$ 360 milhões, com um déficit atual de R$ 170 milhões. Se não houver descontingenciamento, a UFRJ vai parar os serviços de limpeza, segurança… E nós somos uma universidade no Rio de Janeiro, uma cidade com bastante insegurança. Além disso, temos nove hospitais que podem ficar sem luz, 1,2 mil laboratórios sem luz. Pode ocasionar não só a morte de animais de experimentação, mas também de pacientes.
OP – A senhora projeta ter dificuldades financeiras a partir de quando?
Denise – Nós já estamos com dificuldade porque as empresas (contratadas para executar serviços básicos) podem ficar sem receber dois meses, mas no terceiro mês elas param o funcionamento. Nós estamos nesse terceiro mês, elas estão prestes a parar. A gente tem dialogado com o MEC e exposto essa questão gravíssima pela qual a UFRJ passa neste momento.
OP – Acredita que os recursos serão descontingenciados?
Denise – Se não houver descontingenciamento, teremos que parar. Não porque queremos, mas porque essa parada estará sendo causada pelo próprio Ministério da Educação. Não acredito que o MEC queira parar a maior federal do País.
OP – A evasão escolar no ensino superior tem servido de munição para os críticos das universidades federais. Esse aspecto é um problema?
Denise – A evasão no ensino superior não é um problema só das instituições públicas, ele também acontece nas instituições privadas. Um fenômeno no âmbito das universidades públicas e privadas de igual magnitude mostra que a causa muito provavelmente está fora das universidades. É uma causa socioeconômica. As pessoas ingressam na universidade, mesmo públicas, e isso tem um custo. É o custo do transporte, da alimentação etc. Por mais que a gente tenha um programa importante de assistência estudantil, ele não alcança todos os estudantes. Uma pequena parcela dos estudantes se evade porque não está satisfeita com o curso. A maior parte acaba se evadindo porque não tem condições financeiras de permanecer na universidade. Ele precisa trabalhar, precisa ingressar no mercado. Essa situação dramática melhora na medida em que as condições sociais do País melhorarem. Mas a UFRJ pretende olhar com muita calma e seriedade essa questão. A gente quer implantar um programa, que talvez seja um programa pioneiro, para diminuir as taxas de evasão. Esse é o papel da universidade, inovar. A gente pretende introduzir disciplinas de ensino a distância, que não serão a maioria, mas uma ou outra no final do curso, quando os alunos param porque já entraram no mercado de trabalho e ficam sem se formar por causa de uma ou outra disciplina. Essas disciplinas poderão ser ministradas na forma de plataformas a distância. Um outro ponto é a mobilidade dos estudantes entre diferentes cursos. A gente quer que essa mobilidade seja incentivada e desburocratizada. Hoje já existe, mas é burocrática. Editais são abertos e estudantes são analisados, e há uma fila de espera. A UFRJ pretende desburocratizar isso. São apenas algumas ações que desejamos implantar na universidade, e queremos que isso seja modelo para outras instituições do País.
OP – Como avalia a cobrança de mensalidade na pós-graduação?
Denise – Nós somos contrários à cobrança de mensalidade qualquer que seja a atividade-fim da universidade, no ensino, na pesquisa ou na extensão. A mensalidade pode acontecer nos cursos “lato sensu”. Esses cursos já estão regulamentados inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Temos vários cursos “lato sensu” na UFRJ há muitos anos. São tradicionais e muito bem-vistos, ministrados para a iniciativa privada, portanto nada mais justo que elas paguem. O “lato sensu”, que não é uma atividade-fim da universidade, pode ser cobrado. Fora disso, não deve haver cobrança.
OP – Estamos a pouco mais de um ano do incêndio do Museu Nacional. Acha que o País aprendeu com aquele evento?
Denise – Antes eu olhava a distância, agora estou vendo esse problema por dentro. Na verdade, também é um problema brasileiro, não apenas da universidade. A UFRJ funciona dentro de prédios tombados, o que também não é uma especificidade do Brasil. As principais universidades europeias estão dentro de prédios dos séculos XII e XIII, ou seja, muito mais antigos do que os nossos. Qual é a diferença do que acontece na Europa para o que acontece no Brasil? Esses prédios têm uma verba destinada para eles, têm um cuidado especial, e o Brasil não sabe fazer isso. O orçamento que a UFRJ recebe é relacionado ao número de estudantes que se formam, não é um orçamento que leve em consideração os nossos prédios tombados. Isso é muito ruim. A tendência é que a manutenção desses prédios, que é mais cara, fique esquecida porque é muito pesada e a gente tem um orçamento curto. Acabamos cuidando daquilo que vai fazer o funcionamento básico da universidade, pagar a luz, pagar a água, e a manutenção fica esquecida, que é o caso do Museu Nacional. Para além de museu, ele é uma unidade acadêmica. Há seis cursos de “stricto sensu” que funcionavam lá, vários laboratórios de pesquisa e todo material desses cursos. Tudo isso foi perdido. É muito ruim para a pós-graduação brasileira, é muito ruim para a antropologia e a arqueologia, que são áreas nas quais o Brasil está entre os melhores do mundo. É uma perda irreparável. A gente só pensa em reconstruir. Obviamente, a reconstrução física é uma coisa e a reconstrução desses laboratórios é uma outra coisa. Hoje a gente está seguindo com as duas frentes ao mesmo tempo. Aliás, a gente está cuidando muito mais dos laboratórios neste primeiro momento, porque a gente quer que as atividades acadêmicas retornem o mais rápido possível.
“As principais universidades europeias estão dentro de prédios dos séculos XII e XIII, ou seja, muito mais antigos do que os nossos. Qual é a diferença do que acontece na Europa para o que acontece no Brasil? Esses prédios têm uma verba destinada para eles, têm um cuidado especial, e o Brasil não sabe fazer isso.”Denise Pires de Carvalho, reitora da UFRJ.
OP – E quanto à reconstrução do museu em si, como está o trabalho?
Denise – Há três frentes de trabalho ao mesmo tempo. Uma é o resgate de algumas alas do Museu Nacional. Ainda faltam 17 salas a serem trabalhadas. Esse resgate a gente espera finalizar até o próximo ano. Ao mesmo tempo, há um projeto, que deve começar em 2020, de reconstrução da fachada e do telhado do museu. Então o resgate, a fachada e o telhado vão acontecer simultaneamente. Enquanto isso, um prédio anexo, ali na Quinta da Boa Vista, está sendo reconstruído. É um terreno onde serão reconstruídos laboratórios e áreas de exposição temporária. Ao mesmo tempo, estamos recuperando o horto e a biblioteca que ficam dentro da Quinta da Boa Vista, que precisa de recuperação estrutural e rede elétrica também.
OP – Tudo isso num cenário de lençol curto.
Denise – Exatamente. O MEC mandou uma verba emergencial que foi muito bem-vinda e muito bem utilizada. No dia 31 de agosto vamos fazer um evento para que o Ministério da Educação e parlamentares envolvidos na verba destinada ao museu possam ver o que foi feito nesse primeiro ano, que é um trabalho muito bom. A sociedade vai saber o que foi feito com o museu.
Fonte: Jornal O Povo (29 de julho de 2019)